As regras do jogo

Por Tullio Damin da Sois

Um estudo de janeiro deste ano realizado pela XP Investimentos corroborou pesquisas realizadas há cerca de uma década atrás: o Senado Federal, a Câmara dos Deputados e os partidos políticos são as instituições com os maiores índices de desconfiança entre a população brasileira: 79%, 83% e 89%, respectivamente. Os números mostram que, apesar das várias eleições passadas e da incessante luta contra a corrupção dos últimos anos, ainda estamos muito longe de um nível decente de confiança em nossos representantes políticos.

As razões dessa desconfiança são muitas, mas podemos sugerir tranquilamente que as principais são a sistemática falta de resultados do poder político brasileiro, assim como a falta de qualidade e de idoneidade de nossos representantes. Daí a extrema importância da mudança das regras pelas quais escolhemos os nossos representantes, da chamada Reforma Política – aparentemente esquecida em meio às reformas de cunho mais administrativo, financeiro e econômico, e à pandemia, é claro.

É verdade que a aprovação em 2017 da Emenda Constitucional n° 97 representa um avanço nessa área, ao proibir as coligações partidárias nas eleições proporcionais, obrigando os partidos a lançarem candidatos por conta própria aos cargos legislativos. Com isso elimina-se o fenômeno dos “puxadores de votos”: como os votos obtidos por todos os candidatos de uma determinada coligação antes eram somados e considerados de forma conjunta no cálculo de distribuição de cadeiras legislativas, alguns poucos candidatos dentro de tal coligação que obtinham votações muito expressivas acabavam “puxando” junto com eles candidatos de baixa expressão eleitoral da mesma coligação, ao passo que outros candidatos com resultados mais expressivos nas urnas ficavam de fora da distribuição de cadeiras. Apesar disso, a mudança é muito tímida, e solucionou somente a ponta do iceberg de problemas que é o nosso sistema político-representativo.

Uma Reforma Política muito mais ampla e profunda é necessária, até mesmo por consistir de um problema de duas dimensões complementares: a eleitoral-representativa e a político-partidária. A segunda dimensão é um pouco mais conhecida do público e trata, em resumo, do número exacerbado de partidos políticos no Brasil e das formas de financiamento e de acesso a recursos públicos pelos mesmos. De forma sucinta, os problemas desta dimensão são: a facilidade de acesso e a alta dependência de recursos públicos, situação agravada pela recente limitação das doações eleitorais de fontes privadas e pela criação do chamado Fundo Eleitoral, destinado para o custeio de campanhas eleitorais – além do já existente Fundo Partidário; e a fragmentação partidária decorrente tanto das diferenças regionais e locais brasileiras como da própria facilidade de acesso aos recursos públicos. Este último aspecto se traduz na existência de muitos pequenos partidos que, de forma conjunta, controlam uma parte expressiva do poder político e acabam por tornar-se necessários para a composição de maiorias nas casas legislativas – o que leva a política em geral a um caminho de negociações muita vezes espúrias, cujos resultados são o afago dessas pequenas elites partidárias através da manipulação de vantagens, benefícios, posições e cargos públicos.

A primeira dimensão da Reforma Política, no entanto, é mais complexa e, provavelmente por conta disso, menos conhecida. Vejamos os diversos aspectos problemáticos dessa dimensão eleitoral-representativa. O sistema eleitoral brasileiro é de voto proporcional em lista aberta. Neste sistema, a lista de cada partido é ordenada de forma decrescente e após a votação, de acordo com os candidatos mais bem votados – porém, a distribuição de vagas fica condicionada em primeiro lugar ao desempenho das legendas partidárias: primeiro se considera o total de votos da legenda e depois são realizados os cálculos do quociente eleitoral e do quociente partidário, que definem a distribuição de cadeiras entre os partidos. Quanto maior a votação total de um dado partido, maior o número de cadeiras às quais ele terá o direito de ocupar, e serão os candidatos mais bem votados de cada legenda que assumirão tais vagas. Além disso, o sistema eleitoral brasileiro possui circunscrições/distritos eleitorais integrais, ou seja, não há segmentação regional do eleitorado, sendo todo o território de um estado federativo ou de um município a circunscrição na qual todo e qualquer candidato terá de buscar seus votos.

Os resultados destas regras em um país com o tamanho e as disparidades regionais como o Brasil são trágicos. Os brasileiros geralmente não se lembram em quem votaram para cargos legislativos nas últimas eleições pois o incentivo dessas regras é fazer com que os partidos lancem um número altíssimo de candidatos na busca pela obtenção da maior votação total possível. Essa infinidade de opções confunde a cabeça do eleitor e afeta a memória eleitoral do mesmo, ainda mais por que a maioria dos candidatos acabam nunca sendo eleitos. Uma segunda consequência do sistema é o distanciamento, ou até mesmo a ausência, de vínculo de representação e de cobrança entre o eleitor e seu representante político, já que as bases eleitorais são muito difusas ou até mesmo uma incógnita, o que restringe a votação por orientação e consciência própria, além de tornar os representantes mais suscetíveis a quaisquer outros tipos de pressão política que não a dos seus eleitores. Um terceiro resultado é o favorecimento da infidelidade partidária: se o candidato X julga ter poucas chances de alcançar a votação necessária para ser eleito pelo partido A, ele pode migrar para o partido B para aumentar suas chances de eleição. Além disso, esse ponto também enfraquece drasticamente o desenvolvimento de interesses políticos ligados a uma visão de nação e Estado com objetivos de longo prazo e de visões ideológicas mais autênticas em favor de interesses meramente eleitoreiros. Por fim, o tamanho dos distritos eleitorais gera um quarto problema – além do agravamento do distanciamento entre eleitor e representante. Já que eleitores de qualquer parte do estado ou município podem votar em qualquer candidato de qualquer cidade, região ou bairro, e estes últimos têm de fazer campanha para o estado ou a cidade inteira, os custos de uma campanha acabam ficando muito altos, o que abre as portas para a corrupção e desestimula a participação de mais pessoas de boa índole na disputa eleitoral.

Infelizmente, os problemas da dimensão eleitoral-representativa não param por aí. Apesar da Emenda Constitucional n° 97 ter proibido as coligações proporcionais, a mesma não eliminou a possibilidade de se formar coligações eleitorais sem vinculação das alianças partidárias entre a esfera nacional e as esferas subnacionais. Apesar de representar um elemento que, sob a ótica da dimensão espacial, representaria maior autonomia regional e local, essa característica dificulta ainda mais uma maior coesão político-ideológica no país e uma visão de longo prazo para a nação, obscurecendo as opções eleitorais oferecidas à população.

Há ainda que se fazer menção às distorções na representação dos estados federativos na Câmara dos Deputados – crítica essa que também pode ser direcionada à representação nas Assembleias Legislativas de cada estado. Três fatores podem ser apontados como causas dessas distorções. O primeiro e segundo fatores são, respectivamente, a definição de um número mínimo e de um número máximo de deputados por estado federativo, independentemente da população de cada estado, com o agravante de normas que definem a distribuição de cadeiras na Câmara segundo intervalos crescentes: a partir de um determinado nível, é maior o número de habitantes ou eleitores necessários para que um estado aumente a sua bancada. Por fim, o terceiro fator de distorção representativa é a ausência de revisão periódica do número de deputados de cada estado federativo em relação às alterações ocorridas nas populações dos mesmos. O conjunto destes fatores leva ao seguinte problema: a sobre-representação de estados de menor contingente populacional e a sub-representação de estados com maiores contingentes populacionais. Em geral, os estados sub-representados são os mais desenvolvidos e industrializados do país, enquanto que os estados sobre-representados correspondem aos menos desenvolvidos e industrializados. Assim, a consequência para a política nacional é um aumento da representação política de regiões mais atrasadas e, portanto, mais sujeitas às práticas políticas tradicionais de elites regionalistas e localistas, cujos objetivos se centram na busca de cada grupo em particular em conquistar, aumentar, direcionar e usufruir do seu quinhão de poder e do acesso a recursos públicos junto à continuamente agigantada estrutura estatal brasileira.

É autoevidente que uma profunda Reforma Política é necessária no Brasil. A altíssima desconfiança da população brasileira em seus representantes não é por acaso – pelo contrário, é extremamente compreensível. A qualidade da condução dos rumos do Brasil é refém de longa data de uma classe política ineficiente, corrupta e desvinculada daqueles os quais ela supostamente representa. Há que se mudar o modo pelo qual escolhemos os nossos representantes, urgentemente. Afinal de contas, são as regras que fazem o jogo – e enquanto as regras político-representativas brasileiras se mantiverem como estão, nunca será possível ter confiança no jogo.

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